"Se pensas que és pequeno para fazer a diferença... tenta dormir num quarto fechado com um mosquito."
Provérbio africano, no editorial da revista "Recicla"
18.10.08
A ALDEIA QUE FOGE À TRISTE REGRA DO INTERIOR
Um oásis em Trás-os-Montes. O que é que a aldeia de Palaçoulo, em Miranda do Douro, tem de diferente das outras aldeias de Trás-os-Montes? Na escola do ensino básico surgiu uma segunda turma, não há população desempregada. É um verdadeiro oásis, dizem, no reino da desertificação
Escola Primária de Palaçoulo reabre com mais uma turma
O David quer ser caçador quando for grande. A professora explica-lhe que caçar coelhos, perdizes ou até mesmo javalis, nos montes do planalto mirandês, não é profissão. Então, talvez seja electricista como o pai, que, quando chega o mês de Outubro, também anda pelos montes a dar caça às espécies cinegéticas. David, 10 anos, frequenta uma das raras escolas de aldeia do interior transmontano. E uma escola com muitos alunos, correrias, risos e brincadeiras no hora do recreio.
Este ano, David viu chegar seis novos colegas. E uma nova professora, porque a escola do 1.º ciclo básico de Palaçoulo, no concelho de Miranda do Douro, de uma passou a ter duas turmas. Caso único, espantoso, num distrito que viu, só nos últimos três anos, encerrar 220 estabelecimento de ensino. E aqui o crescimento da comunidade estudantil não se deve a filhos de imigrantes, como aconteceu há anos no Algarve: são filhos de jovens casais de Palaçoulo.
Nesta aldeia onde os mais velhos ainda falam o mirandês, ao contrário do resto do País, não há desemprego. A indústria da tanoaria e das cutelarias absorve toda a mão-de-obra jovem da terra e de "aldeias vizinhas", diz com orgulho José Augusto Ramos, antigo guarda fiscal, agora presidente da junta de freguesia. E mais casais jovens, por certo, ficarão na terra onde nasceram quando avançar o loteamento, feito pela autarquia, que permitirá a construção de doze fogos.
Conceição Mendo, há dois anos a leccionar em Palaçoulo, encontrou nesta aldeia de Miranda alunos com conhecimentos "razoáveis". "São crianças que já têm computador em casa e sabem lidar bem com as novas tecnologias." Os pais, o casal, estão empregados. "Depois do trabalho na fábrica, vão para o campo e todos cultivam a sua horta." Este complemento sadio, segundo a professora, permite-lhes "um nível económico sem grandes problemas".
David, o menino que deseja ser caçador como o pai, gostava de aprender o dialecto dos seus antepassados. Aliás, todos os alunos do 4.º ano manisfestaram esse desejo. E podiam aprender o mirandês, disciplina optativa, a par do inglês. À entrada da aldeia, na placa toponímica o nome aparece grafado em Português e no dialecto local. Os pais, contudo, não acharam importante os seus filhos saberem falar e escrever em mirandês. Já em Sendim, na outra escola do agrupamento, os alunos recebem duas horas semanais dessa língua.
Se no 1.º ciclo do ensino básico houve um crescimento de alunos, na pré-primária, que funciona mesmo ao lado da escola, a história é um pouco diferente. Pela primeira vez, nos últimos anos, saíram crianças (as seis que forçaram a duplicação da turma) e não entrou nenhuma. A situação não é preocupante, garante a educadora Ermelinda Fernandes. "Palaçoulo é uma aldeia em desenvolvimento", diz. Dentro de três ou quatro anos, o jardim infantil , agora com meia dúzia de meninos, voltará a atingir o número de "12 ou 13 crianças".
Palaçoulo com tecnologia ao nível da indústria alemã
Trabalho. Empresas familiares passam fronteiras e travam despovoamento
Chamam-lhe o "oásis" no meio da desertificação transmontana. Na aldeia de Palaçoulo, terra de fabricantes de pipas , facas e canivetes, não há desemprego. A agricultura, outrora a principal actividade, está em declínio, mas as indústrias locais, todas elas familiares, sustêm o despovoamento.
A família Gonçalves tem um século de experiência na arte de tanoaria. Da pequena oficina artesanal, passou a fábrica com a mais moderna tecnologia, que exporta "80 a 90 %" da sua produção". As pipas aqui produzidas destinam-se, refere José Gonçalves, a mercados como o dos Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, França, Chile e Argentina.
A tanoaria da família Gonçalves dá emprego a 42 pessoas. O volume anual de negócios ronda os 5 milhões de euros. "Não é nada do outro mundo", refere José Gonçalves, jovem empresário, que ajudou à duplicação da turma da escola do ensino básico: um filho entrou agora para o 1.º ano, tem outro na pré-primária. "Não é nada do outro mundo, porque estamos numa aldeia. E se dizem que isto é um oásis, o que nos cerca, toda a região transmontana, é um deserto!"
Palaçoulo também nos remete para as cutelarias, com grande tradição na aldeia, que fica a cerca de 25 quilómetros de Espanha. Na mais familiar de todas, os três irmãos Pires, que aprenderam a arte com o pai, fizeram em tempos "o maior canivete do mundo". Não saberemos se é ou não o maior de todos. Um coisa é certa, vimos a réplica e tal navalhinha impõe--se: aberta mede quase quatro metros, pesa 122 quilos.
Os irmãos Pires, presença habitual nas principais feiras de artesanato do País, demoraram nove dias a fabricar o gigantesco objecto. Esta casa - aos três irmãos junta-se outro artesão - além dos canivetes, alguns com cabo de chifre de veado ou de dente de javali, fabrica facas, punhais, cutelos e machados.
Com outra dimensão são as duas fábricas de cutelarias: a de José Afonso Martins e a FilMAM. Empregam 40 trabalhadores e disputam mercado além fronteiras. "Temos tecnologia evoluída ao nível dos alemães", diz o sócio gerente da Afonso Martins. Espanha, França, Itália e Angola são alguns dos países para onde são exportadas as cutelarias de Palaçoulo.
Uma das empresas, familiares como todas as outras existentes na aldeia de Trás-os-Montes profundo, tem licenciamento para produzir, desde este ano, canivetes com os símbolos dos três grandes do futebol português: Benfica, Porto e Sporting.
A freguesia de Palaçoulo tem 700 habitantes. O presidente da junta, José Augusto Ramos, deseja preservar a memória da agricultura tradicional da sua agora industrializada aldeia. Um particular ofereceu-lhe o espólio, fruto de recolhas de anos. Falta o espaço para o museu.
in Diário de Notícias
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